Influenciador cristão propaga conteúdo enganoso no Youtube sobre descriminalização de pedofilia e drogas

Em 17 de abril, o músico e influenciador cristão Rafael Bitencourt publicou, em seu canal no YouTube, um vídeo em que afirma que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem um novo projeto para que seus países membros descriminalizassem o uso de drogas e atos sexuais entre adultos e crianças. O conteúdo ultrapassou a marca de 75 mil visualizações em apenas 10 dias.

No vídeo, Rafael faz uso de imagens de captura de tela, de um site dos Estados Unidos, que teria publicado a notícia para sustentar sua afirmação. Outros veículos de comunicação, como Gazeta do Povo e Tribuna Nacional, repercutiram a polêmica.

Conteúdo e objetivo do vídeo 

O vídeo intitulado “Todo cristão e quem ainda tem alma, têm que ver isso! Novo Projeto da ONU (sic) traz como imagem de capa (“thumbnail”) o símbolo da Organização das Nações Unidas (ONU) com os dizeres: “pediu a legalização da ‘pedo’ e das drogas”.


Segundo o youtuber, ele precisa “passar a informação e instar” os seguidores “a pensar e criticar sabiamente essa agenda global”. Na sequência, o músico afirma que a ONU lançou um relatório com orientações jurídicas para seus países membros com relação a descriminalização do uso de drogas e de atos sexuais entre adultos e crianças.

Ao longo do vídeo, o influenciador Rafael Bitencourt apresenta a cartilha supostamente publicada pela ONU e diz: “está aí, a ONU pede a liberação da ‘pê.do’, é isso que você está vendo”. Bitencourt não menciona a palavra “pedofilia”. Segundo ele, é constantemente perseguido e corre o risco de ter seus vídeos banidos da plataforma caso mencione determinadas palavras.Um pouco adiante, o influenciador afirma que o documento da ONU usa “as terminologias utilizadas pela esquerda marxista, pelos socialistas do Brasil ou de vários lugares do mundo, a exemplo dos estados democratas radicais nos Estados Unidos, da Holanda, de outros países do mundo”.

O vídeo é marcado por indagações genéricas como “para quem a ONU trabalha?” e por omissões reiteradas de palavras que supostamente levariam à retirada do vídeo da plataforma. Uma clara necessidade de manter a constante mensagem de que algo oculto está sendo revelado pelo influenciador e que por isso há perseguição.

Quem é Rafael Bitencourt

Rafael Bitencourt é músico, abertamente cristão, e foi membro da banda gospel Toque no Altar. Em 2011, rompeu com o grupo e seguiu carreira solo, tendo lançado três discos desde então, sempre no nicho gospel. As informações estão disponíveis na aba “sobre” da conta do cantor no Spotify.

Seu canal no YouTube, criado em 2011, mesma época em que o músico iniciou carreira solo, continha vídeos de cunho musical ou religioso até meados de 2019. Músicas autorais, pregações e testemunhos de fé podiam ser facilmente encontrados.

Com o início da pandemia de covid-19, porém, Bitencourt realizou uma mudança em sua presença digital. Em 23 de março de 2020, o youtuber publicou o vídeo “2020 A Igreja Nunca Mais Será a Mesma”, o primeiro em que é possível constatar uma nova forma de se apresentar para o grande público, deixando de lado a música e incorporando abordagens de temas de grande engajamento nas redes digitais.

No dia 28 do mesmo mês, Bitencourt publicou vídeo intitulado “Quarentena? É muito além disso! Entenda!!!”. A partir daí, observa-se o aumento na frequência de postagens, vídeos mais elaborados e a paulatina construção de um discurso conspiratório sobre política, finanças, ciência e religião.

Real origem do relatório apresentado por Rafael Bitencourt

O documento utilizado por Bitencourt para sustentar o argumento, segundo o qual a ONU gostaria de promover o consumo de drogas e a pedofilia, intitula-se, em tradução livre, “Os princípios de 8 de março para uma abordagem baseada em Direitos Humanos para a proscrição de uma condução de Direito Penal associada a sexo, reprodução, uso de drogas, HIV, falta de moradia e pobreza”.

Imagem: site da Comissão Internacional de Juristas

Ao contrário do que diz o youtuber, o documento em questão não foi publicado pela ONU. Trata-se de uma publicação da Comissão Internacional de Juristas (CIJ), organização não-governamental, fundada em 1952, que reúne 60 juristas de todas as partes do mundo com o objetivo de “garantir o desenvolvimento e a efetiva implementação dos direitos humanos internacionais e do direito internacional humanitário”.

A CIJ não tem o poder de implementar legislações, quer sejam internacionais ou nacionais. Suas publicações são orientações gerais, oferecidas por um grupo de juristas, que podem servir de inspiração para juízes, legisladores ou, até mesmo, para discussão em foros internacionais. No caso específico da publicação de 8 de março, a CIJ promoveu uma apresentação da abordagem na 52ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no último Dia Internacional da Mulher, em Genebra, em conjunto com programas específicos da ONU, organizações não governamentais e governos nacionais.

Do que trata o relatório da CIJ

O documento foi lançado em 8 de março de 2023, Dia Internacional da Mulher, e aponta questões consideradas importantes para a preservação dos direitos humanos no mundo. Como o título informa, não apenas drogas e direitos sexuais e reprodutivos estão incluídos, mas também o cenário da pobreza, da falta de moradia e das condições de portadores do HIV.

O cerne da preocupação exposta no documento é a atual tendência crescente de Estados utilizarem o Direito Penal para lidarem com situações diversas, da pobreza a comportamentos sexuais, resultando em um processo de excessiva criminalização de indivíduos e, às vezes, de comunidades inteiras. 

O documento ressalta que, embora o Direito Penal esteja disponível como forma mais dura de controle estatal, muitas vezes é utilizado em sua função meramente expressiva, sem levar em conta aspectos como dissuasão e reabilitação dos indivíduos.

Ao contrário do que afirma o influenciador cristão, não se trata de propor que países adotem legislações exageradamente permissivas. O que o documento propõe é que haja, primeiro, uma abordagem não-penal dos fenômenos descritos, para que os direitos humanos sejam preservados.

Conduta sexual consensual

O documento da CIJ afirma que o sexo com consentimento não deve ser criminalizado, independentemente de quem esteja envolvido. Fica clara a preocupação dos juristas com perseguições à comunidade LGBTQIA+ e com a criminalização, que ocorre em alguns países, do sexo (mesmo que consensual) feito por mulheres antes do casamento.

A respeito da idade de consentimento, aspecto alarmado pelo youtuber, os juristas consideram que a aplicação da lei penal deve considerar as capacidades evolutivas de pessoas menores de 18 anos, tendo em conta sua idade, maturidade, autonomia e, primordialmente, garantindo a não discriminação de indivíduos e comunidades historicamente perseguidas.

Não se busca, como afirma Bitencourt, autorizar a pedofilia ou “aliviar a barra dos criminosos”.  O que se quer é garantir que indivíduos plenamente capazes que, por livre e espontânea vontade, tenham praticado atos sexuais, não sejam considerados criminosos. 

A agência de notícias The Associated Press (AP) desmentiu a informação enganosa, que também circulou fora do Brasil.

Drogas para uso pessoal

Sobre o uso de drogas, os juristas recomendam que não sejam criminalizadas pessoas que tenham sob sua posse drogas para uso pessoal, que distribuam bens ou informações relacionadas ao uso pessoal de drogas, que estejam envolvidas em esforços científicos para prevenir danos associados a drogas e que busquem receber informações sobre serviços de saúde para pessoas que usem drogas.

Apesar de não explorar muito o tema das drogas no vídeo em questão, Bitencourt afirma que “já estão fazendo muita pressão (…) para aprovar a descriminalização”, e então mostra um papel em que é possível ler a palavra “drogas”, em mais uma referência à suposta perseguição promovida contra si na plataforma de vídeos.

Conforme publicado anteriormente por Bereia, tanto o tema da pedofilia quanto o tema das drogas têm sido frequentes em narrativas desinformativas veiculadas por grupos e indivíduos religiosos.

***

O conteúdo checado por Bereia é considerado enganoso. O vídeo oferece a informação de que há um documento, lançado por ocasião do Dia Internacional da Mulher, que trata sobre descriminalização de alguns comportamentos. No entanto, a verdadeira autoria do documento é apresentada de forma a confundir os interlocutores e sua verdadeira substância é manipulada.

A apresentação do conteúdo é desenvolvida para confundir, com títulos e imagens que não correspondem à realidade, instigando julgamentos negativos de uma organização. Além disso, evoca sensacionalismo para conquistar audiência, ao tratar de forma sensacionalista temas de grande apelo popular.

Bereia incentiva que seus leitores e leitoras continuem alertas para conteúdos nas redes digitais que mesclam discurso religioso com pautas políticas pouco claras e que apresentem sinais clássicos de desinformação, como discurso vago, afirmações genéricas, terceirização de responsabilidades e apelo à pauta de costumes.

Referências de checagem:

The 8 March Principles for a Human Rights-Based Approach to Criminal Law Proscribing Conduct Associated with Sex, Reproduction, Drug Use, HIV, Homelessness and Poverty.

https://icj2.wpenginepowered.com/wp-content/uploads/2023/03/8-MARCH-Principles-FINAL-printer-version-1-MARCH-2023.pdf Acesso em: 27 abr 2023

ICJ. https://www.icj.org/icj-publishes-a-new-set-of-legal-principles-to-address-the-harmful-human-rights-impact-of-unjustified-criminalization-of-individuals-and-entire-communities/ Acesso em: 27 abr 2023

UNAIDS. https://unaids.org.br/sobre-o-unaids/ Acesso em: 27 abr 2023

Agência AIDS. https://agenciaaids.com.br/noticia/unaids-novos-principios-juridicos-lancados-no-dia-internacional-da-mulher-para-promover-os-esforcos-de-descriminalizacao/#:~:text=Os%20’%20princ%C3%ADpios%20de%208%20de,falta%20de%20moradia%20e%20pobreza. Acesso em: 27 abr 2023

AP News. https://apnews.com/article/fact-check-united-nations-report-consent-772818741019 Acesso em: 27 abr 2023

Fonte: Coletivo Bereia

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